Michael, nós ainda temos medo
Corra até o YouTube e procure uma apresentação do Jackson 5 cantando seu primeiro sucesso, “I want you back”, num programa de auditório em 1971. Michael Jackson tem 13 anos, é baixinho, magrinho, e evita encarar a plateia. Seu olhar é voltado a algum ponto fora do nosso campo de visão. Os outros quatro estão ao fundo, fingem tocar seus instrumentos, e a câmera só se volta para eles por complacência. A estrela é a criança que, resguardada por seu olhar vazio, compreende cada palavra de uma letra estranhamente adulta sobre o fim de um relacionamento.
No finalzinho do vídeo, Michael abre os braços e grita “I was blind to I let you go”. “Eu estava cego quando lhe deixei partir”. O auditório urra. Como alguém tão jovem soube digerir um sentimento que parecia estar além da sua faixa etária? Aos 13 anos, ele podia não ter vivido um trauma amoroso, ainda que o verbo da perda possa ser conjugado por pessoas de todas as idades. Foi o primeiro dos muitos sustos que o cantor nos deu ao longo da carreira. Uma carreira marcada por dois medos: o nosso e o dele.
Trinta anos depois, os fatos em torno de “Thriller” permanecem assustadores: o disco mais vendido da história; o irreproduzível passo de moonwalking; a mudança progressiva de cor; nossas ambíguas distância e proximidade em relação ao álbum (Michael, faz 30 anos!). E, claro, seu repertório. Produzido por Quincy Jones, “Thriller” virou sinônimo de perfeição pop, ainda que hoje a palavra perfeição se esvazie na rapidez das redes sociais. Estão lá a marcação tribal de “I wanna be started something”, o duelo afetivo de “The girl is mine”, o abandono esperançoso de “Human nature” e o baixo com som de coração mumificado de “Billie Jean”. Em menos de uma hora de audição, tudo o que a música popular sonhou em ser para continuar envergando o adjetivo “popular” é reproduzido.
O susto estava também no vídeo da canção título: Michael comandava um grupo de zumbis quando mal compreendíamos o que era um videoclipe. A perfeição de “Thriller” assustou uma década, os anos 1980, que se esmerava no brilhantismo dos seus penteados, no jogo calculado das suas estrelas de sorrisos brancos e no consumo infinito. Se ser ocidental, homem e branco guiavam o caminho até o paraíso, como todos esse imaginário poderia estar tão bem representado num só cantor, que ainda por cima acreditava ser fácil “caminhar sobre a lua”? Michael, deu medo. Michael, 30 anos depois, ainda dá medo.
Com o passar dos anos, nosso susto deixou de ser a sua música perfeita e migrou para a personalidade do artista. Houve o medo do homem que dormia com crianças, que vivia numa terra encantada e que teimava em ser o garoto de 13 anos de voz aguda que permanecia olhando para algum lugar fora do nosso campo de visão. Quem evita nosso olhar, sempre nos assusta. E medo é fascínio.
Assustados, deixamos de olhar Michael nas últimas duas décadas. Preferimos nos distrair com seus imitadores, acreditar no tabloide ambulante que ele se tornou e até baixávamos o som ao mínimo sinal da sua música! Quando o cantor faleceu em 2009, o medo parecia, enfim, ter arrefecido. Morto, Michael parecia sob controle: não mais poderia se mexer, nem se aproximar ou se afastar de nós. Voltamos a aumentar sua música, a olhar suas fotos, a rever seus vídeos... Estávamos, assim como ele, num lugar seguro.
No entanto, lembrar a efeméride de “Thriller” em 2012 permanece assustador: dificilmente outra criança saberá compreender tão bem (publicamente) uma perda irrespondível como ele fez em “I want you back”, ninguém venderá tantos discos (quase não existem mais discos) ou algum outro dançarino nos perturbará com a ilusão de que é simples caminhar sobre a lua.
SAIBA MAIS
- “Thriller” continua sendo o álbum mais vendido de todos os tempos. No Brasil, ele ainda é o disco internacional de maior sucesso comercial, com vendagem de mais de 1,2 milhões de cópias
- O álbum conquistou um recorde de sete prêmios Grammy em sua edição de 1984
- O disco ficou na vigésima posição da lista dos “500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos” feita pela revista Rolling Stone em 2003
- O videoclipe de “Thriller” foi preservado pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos por ser considerado “culturalmente significativo”
- Quincy Jones, produtor do disco, já havia trabalhado com Michael Jackson em seu disco anterior, “Off The Wall”, também sucesso de crítica e público
- Em 2008, foi lançada uma edição especial dos 25 anos do álbum com nova capa holográfica, além de remixes com participações de Fergie, Akon, Will.I.Am e Kanye West.
Fonte: Folha de PE
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